(Comunicação efectuada no VII Congresso dos Advogados Portugueses)
A situação da Justiça no nosso País bateu no fundo! Com a chamada reforma da acção executiva, Portugal transformou-se no paraíso dos devedores relapsos. O Processo Penal – de cujas fases mais decisivas (o inquérito e a instrução) os Advogados foram e continuam expulsos – constitui hoje uma zona dos mais amplos arbítrios, com uma taxa elevadíssima de prisões preventivas, de inépcias investigatórias, de indeferimento, por decisão irrecorrível, de diligências relevantíssimas para a descoberta da verdade. Mais do que isso, o Processo Penal, sobretudo através das sempre cirúrgicas e sempre impunes violações do segredo de Justiça, converteu-se em instrumento privilegiado do assassinato cívico de cidadãos incómodos. A Justiça Portuguesa em geral é hoje, para o cidadão comum, cada vez mais cara, cada vez mais lenta e cada vez mais inacessível. E as medidas que têm sido sucessivamente anunciadas vão, dentro da lógica da famigerada teoria do pretenso “excesso de garantismo”, sempre no sentido de retirar ainda mais direitos e garantias dos que à mesma Justiça recorrem (seja desjudicializando áreas importantes de resolução de conflitos, seja agravando as já muito elevadas custas judiciais, seja restringindo a possibilidade e os graus de recurso, seja aligeirando a obrigação de fundamentação de decisões).
Os Advogados, depois de transformados primeiro em colectores de impostos e de seguida em oficiais de diligências, depois de serem os únicos sujeitos processuais que têm efectivamente de cumprir prazos, e a quem se vão impondo condições cada vez mais apertadas, são cada vez mais menorizados na sua função e papel sociais, que antes deveriam ser insubstituíveis num verdadeiro Estado de Direito.
Ora não é mais tolerável que o Advogado continue a ser visto como um obstáculo e um empecilho que urge, se não remover, pelo menos constranger por todas as formas para que a Justiça possa enfim “funcionar”. Como também não é de todo aceitável que a Ordem aceite e pratique a lógica de se assumir, antes de tudo e acima de tudo, como uma “polícia de estilo” dos Advogados (que, face a toda a sorte de desvarios e prepotências, o que importa é que se mantenham “cordatos” e “urbanos”, mesmo perante os próprios algozes…) e, simultaneamente, um “funil” para restringir e dificultar quanto possível o acesso dos mais novos à profissão.
E, todavia, é exactamente tudo isto que se passa presentemente
E, todavia, é preciso e é possível lutar contra este estado de coisas! Mas para tanto, imperioso se torna adoptar uma orientação estratégica e seguir um rumo oposto àquele que até agora tem sido seguido, desde logo pela nossa Ordem.
Essa orientação estratégica tem de assentar no entendimento da Justiça como um valor essencial e mesmo estruturante da República Portuguesa enquanto Estado de direito democrático, baseado na dignidade da pessoa humana. E na concepção do acesso à Justiça como direito fundamental de todos os cidadãos, os quais não têm direitos “a mais”, mas sim a menos. E ainda na posição de base de que os fins não justificam os meios. E na ideia matriz de que, sendo os Tribunais os únicos órgãos do Poder político sem legitimidade democrática electiva, a sua legitimação perante o Povo em nome do qual exercem a soberania tem forçosamente de passar por mecanismos e dispositivos que não têm função meramente instrumental mas antes participam da natureza própria da ideia de Justiça em Democracia. E que, até por isso mesmo, não podem ser menorizados e muito menos aniquilados sob pena do completo descrédito e deslegitimação daquela. Tais mecanismos e dispositivos vão assim desde a publicidade das audiências à necessária e efectiva fundamentação das decisões judiciais (único modo de estas se imporem ao respeito pela comunidade), desde o real controle jurisdicional sobre todos os actos e despachos de natureza administrativa (designadamente os do Mº Pº) ao duplo grau de jurisdição e ao recurso quer em matéria de direito, quer em matéria de facto (única forma de se evitar uma cultura de arrogância, arbitrariedade e irresponsabilidade na 1ª instância).
Assim, há que dizer resolutamente “Não!” ao caminhar pelo facilitismo demagógico de que a Justiça está como está porque “há muitos recursos”; há que dizer “Não!” ao discurso do “politicamente correcto” onde hoje se misturam um nacional-saloismo basbaque (que aceita como bom tudo o que os ventos dominantes de lá de fora, designadamente por força da obsessão securitária ou agora sempre sob a invocação do omnipresente “Acordo com a tróica”, ditam) com um novo-riquismo tecnocrático diletante (que admira e defende como “moderno” e “avançado” o sacrificar de tudo e todos em nome das proclamadas “celeridade” e “eficácia”, a ponto de já só parecer relevar uma decisão rápida, não importando quão injusta ela possa ser); há enfim que dizer “Não!” à lógica de cortar nos recursos, cortar nos direitos das partes, cortar nos poderes de intervenção dos Advogados, cortar na exigência da fundamentação, correcta e acessível, de todas as decisões, e de procurar impôr a ideia de que bom julgador não é o que faz boa Justiça, mas sim o que “mata” muitos processos.
E isto porque é essa orientação que precisamente é a principal responsável pelo estado lamentável a que chegou a nossa Justiça, em que a busca da verdade material pouco ou nenhum relevo tem e em que o “ter razão” constitui afinal apenas uma ligeira vantagem de partida, rapidamente anulada pela teia kafkiana da grande maioria dos nossos processos.
Ora, o rumo a seguir só pode ser o da exigência e do rigor no respeito pelos grandes princípios civilizacionais que, noutros tempos, o nosso país foi pioneiro a adoptar e consagrar como o da presunção de inocência de todo o arguido até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, o da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, o das “máximas garantias de defesa”, o do respeito escrupuloso pelos direitos e garantias dos cidadãos seja quem forem e seja que posição ocupem no processo, o da instrumentalidade de todas as normas procedimentais ao objectivo de uma decisão substancial justa, o da igualdade real das partes e o da não denegação da Justiça por motivos de insuficiência económica.
E a táctica a adoptar para vencer um tal desafio apenas pode ser uma: a do “jogar ao ataque” contra todos os atropelos a tais princípios, a da capacidade de denunciar que tais atropelos (quase sempre apresentados ou como “inevitáveis”, designadamente por causa da tróica, ou até como manifestações de “progresso” e de “modernidade”) não passam afinal de gravíssimos recuos civilizacionais.
E, sobretudo, a táctica de fazer da coragem e da audácia nesse ataque e nessa denúncia a “marca de água” da nossa actuação quotidiana, rejeitando como nossos piores defeitos – assim sempre nos ensinaram Homens como Adelino da Palma Carlos e Ângelo d’
É preciso deste modo proclamar com toda a firmeza que a Constituição da República não está suspensa e que, também por isso, não é de todo admissível que, com a cumplicidade do Tribunal Constitucional, se esteja a procurar impôr a ideia de que o chamado “Acordo com a tróica” não tem que estar, como qualquer tratado internacional, subordinado à nossa Lei Fundamental e de que tal dito “Acordo” justifica e legitima toda a sorte de ataques e violações aos direitos cívicos e sociais mais básicos!
Conclusões
1ª A Justiça portuguesa é hoje cada vez mais cara lenta e inacessível para o cidadão comum e as sucessivas medidas de reforma vão sempre no sentido de retirar ainda mais direitos e garantias aos que a ela recorrem.
2ª Não é mais tolerável que o Advogado continue a ser visto como um obstáculo que urge remover ou constranger para que a Justiça possa “funcionar”.
3ª Não é aceitável que a Ordem aceite ser sobretudo uma “polícia de estilo” dos Advogados e simultaneamente um “funil” para dificultar o acesso dos mais novos à profissão.
4ª É preciso mudar este estado de coisas com um rumo estratégico assente na Justiça como um valor estruturante da Republica e no acesso a ela como direito fundamental de todos os cidadãos.
5ª Impõe-se denunciar a tendência de liquidação sucessiva dos direitos fundamentais dos cidadãos sob argumentos como os da “celeridade”, da “eficácia” ou “excesso de garantismo”.
6ª Os Advogados e a sua Ordem devem desempenhar com coragem o seu papel de denúncia e de rejeição dos sucessivos e gravíssimos recuos civilizacionais em matéria dos direitos dos cidadãos.
7ª O “Acordo com a tróica” não passa, quando muito, de um acordo ou tratado internacional, que está subordinado à Constituição da República – a qual não se encontra suspensa – e não pode justificar a supressão ou aniquilamento dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.